Ambiência e entorno de bens culturais

Ambiência e entorno de bens culturais

por Sandra Cureau


Artigo publicado originalmente no site do Ministério Público Federal (www.pgr.mpf.mp.br)

 

Introdução

A questão relativa ao entorno dos bens culturais, apesar de sua indiscutível importância para a visibilidade e a ambiência desses bens, vem sendo muito pouco examinada pelos estudiosos do Direito. Daí a razão pela qual escolhemos nos debruçar sobre esse árido tema, apesar de sabermos, de antemão, o difícil caminho que teríamos pela frente.

Conforme ensina Jacques Le Goff[1], as cidades medievais eram lugares de renovação. A população urbana renovava-se quase que inteiramente em duas gerações, o que igualmente acontecia com a aparência das urbes e suas casas.  Por isso, apenas a destruição de algum monumento de grande valor simbólico, como  uma catedral, poderia causar certa comoção social.  Alberto, o Grande, teólogo e pregador dominicano, apoiando-se em Santo Agostinho, pregava que “uma cidade não é constituída de pedras, mas de homens, de cidadãos.”

A noção de patrimônio como algo a ser preservado só surgiu no século XVIII, durante a Revolução Francesa, mais especificamente, em 1790, quando decreto da Assembléia Nacional criou uma comissão encarregada de arrolar e selecionar os bens confiscados à nobreza e ao clero, visando dar-lhes três diferentes destinações: venda, transformação ou conservação.  Mesmo assim, a primeira lei patrimonial francesa só surgiu em 1887[2].

A proteção dos bens culturais foi construída progressivamente, começando pelas obras de arte,  como quadros e esculturas. As obras arquitetônicas passaram a ser protegidas bem mais tarde, e só nos anos de 1920 e 1930 a preservação se estendeu também ao patrimônio privado.

O direito de propriedade exerceu um importante papel nessa dificuldade de se estabelecer mecanismos de preservação de bens particulares, portadores de valor histórico, cultural ou artístico, uma vez que a noção tradicional de patrimônio sempre esteve diretamente ligada ao direito privado, como bens de valor econômico pertencentes a um sujeito de direito. Tal noção, oriunda do direito romano, distinguia as res in patrimonio das res extra patrimonium,  insuscetíveis de apropriação privada, quais sejam, as vias públicas, o ar, a água, etc.

Foi necessária uma profunda modificação da noção de patrimônio, para que se pudesse considerá-lo como algo além das normas que regem a propriedade privada, ou seja, um bem coletivo, que deve ser protegido dos atentados à sua preservação e conservação, mesmo em face dos interesses de seu legítimo proprietário. Assim, atualmente, no direito público, a noção de patrimônio está estreitamente ligada à noção de interesse público[3].

Tais considerações preliminares são indispensáveis porque a consideração do entorno está diretamente relacionada à proteção do patrimônio imóvel ou arquitetônico.

  1. Proteção do entorno no direito comparado

Na França, a noção de entorno nasceu com os artigos 13 bis e 13 ter da lei de 31 de dezembro de 1913. Essas disposições legais só se tornaram efetivas quando a lei de 25 de fevereiro de 1943 lhes acrescentou a noção de “campo de visibilidade” e a lei de urbanismo, de 15 de junho do mesmo ano, instituiu a permissão para construir.

A preocupação com a visibilidade do bem cultural pode justificar a desapropriação ou o tombamento de outro(s) imóvel(eis) para isolar, desembaraçar a visão, sanear ou valorizar um imóvel tombado ou em processo de tombamento.  Trata-se, entretanto, de medidas que, em razão de sua lentidão e do custo das desapropriações, só devem ser tomadas em casos excepcionais.  Geralmente, o problema se resolve por meio de um controle preventivo dos trabalhos que vierem a ser realizados no entorno dos monumentos de valor cultural.

Igreja de Sant'Ana, Salvador, em 1888 (Acervo Ubaldo Sena, in 'Salvador 50 anos de urbanização, Sampaio, Consuelo Novais )

Igreja de Sant’Ana, Salvador, em 1888 (Acervo Ubaldo Sena, in ‘Salvador 50 anos de urbanização, Sampaio, Consuelo Novais )

Igreja de Santana em Salvador, atualmente

A mesma igreja de Sant’Ana em Salvador, atualmente

Esse regime de proteção do entorno, ao longo dos anos, vem sendo contestado por parte daqueles que são por ele atingidos, como atentatório às suas liberdades. Mas, ainda assim, a Lei francesa de 1913 vem resistindo a qualquer modificação. Por outro lado, evoluções importantes ocorreram, como a criação das Zonas de Proteção do Patrimônio  Arquitetônico, Urbano e Paisagístico, ZPPAUP, em 1983[4], e de perímetros de proteção modificados, em 2000, bem como, mais recentemente, em 2005, com a  racionalização do processo de concessão das autorizações urbanas em torno dos monumentos históricos.

O Código do Patrimônio, de 2004, subordinou a proteção do entorno a duas condições: a natureza dos trabalhos e o campo de visibilidade do bem protegido. Todas as construções novas, demolições, transformações, desmatamento ou modificações que afetem o aspecto do imóvel, no qual os trabalhos serão realizados, necessitam de autorização prévia.

Quanto ao campo de visibilidade, o novo Código introduziu a noção de covisibilidade, isto é, as limitações se aplicam tanto aos imóveis visíveis do monumento protegido como àqueles visíveis juntamente com ele.  Se um projeto de construção se situar dentro do campo de visibilidade de diversos monumentos, essa condicionante deve ser apreciada em relação a cada um deles.

Do ponto de vista da jurisprudência, os magistrados franceses não chegaram, ainda, a uma conclusão unânime quanto à covisibilidade. Para alguns, ela deve ser apreciada a partir do solo, ao passo que, para outros, deve ser examinada a partir das partes mais elevadas da construção.  Outro problema diz respeito ao ponto de vista do observador, isto é, se é necessário que ele esteja em um local público, ou se pode estar em um local privado.  Segundo Labarre[5], na maior parte das vezes, entretanto, o juiz se contenta em constatar, sem maiores explicações, que o imóvel é visível – ou não – do monumento ou ao mesmo tempo que ele.

Já na Itália, conforme observava Ana Marchesan[6], na normativa caracterizada por MÁRCIA WALQUIRIA BATISTA DOS SANTOS ( “in” “Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política”, Ano 1, nº 4, 1993) como sendo desorganizada, além da proteção específica a determinados bens, havia o conceito de ZONA DE ENTORNO, definida por GIAN CARLO MENGOLI, em sua obra “Manuale Di Diritto Urbanistico, Milão, Giuffrée Editore, 2ª ed., 1986, p. 453, da seguinte forma: “ Com a expressão de zona de respeito (…) se pode compreensivamente indicar todas aquelas disposições que limitam a livre atividade edilícia em consideração aos fins de superior interior público, em determinada localidade, ou áreas próximas ou circundantes a lugares ou obras de interesse público. Característica de todos esses vínculos à atividade edilícia é serem limitações ao direito de propriedade, enquanto resguardam todos os bens, que se encontram em determinadas condições previstas na lei, sendo que mais propriamente se define servidão pública ou do direito público que resguardar um determinado bem, sujeito não mais a uma disciplina jurídica, mas em dependência de um especial direito de natureza real (…).”

O recente Código dos Bens Culturais e Paisagísticos, instituído pelo Decreto Legislativo nº 42, de 22 de janeiro de 2004, em seu artigo 45, facultou à Administração prescrever a distância, as dimensões e outras normas, para evitar que seja posta em perigo a integridade dos bens culturais imóveis, que seja prejudicada a sua perspectiva ou luminosidade, ou que sejam alteradas as condições do ambiente e da dignidade do bem. Veja-se:

Artigo 45 – prescrições de tutela indireta.

  1. O Ministro tem a faculdade de prescrever as distâncias, as medidas e as outras normas diretas para evitar que seja posta em perigo a integridade dos bens culturais imóveis, ou que seja danificada a perspectiva ou a luminosidade ou sejam alteradas as condições ambientais e de decoro.
  2. As prescrições de que cuida o inciso 1, adotadas e notificadas para os efeitos dos arts. 46 e 47, são imediatamente prescritrivas. Os entes públicos territoriais interessados serão sujeitos a prescrições idênticas nos regulamentos edilícios e nos instrumentos urbanísticos.

Os artigos 46 e 47 tratam dos procedimentos para a tutela indireta e da notificação e do recurso administrativo correspondentes.

Em Portugal, a Lei n.º 107/2001 estabelece as bases da política e do regime de proteção e valorização do patrimônio cultural: Leiam-se, em especial, os seguintes artigos:

Art. 44. A lei definirá outras formas para assegurar que o patrimônio cultural imóvel se torne um elemento potenciador da coerência dos monumentos, conjuntos e sítios que o integram, e da qualidade ambiental e paisagística.  (……….)

Art. 52. O enquadramento paisagístico dos monumentos será objecto de tutela reforçada.

Nenhumas intervenções relevantes, em especial alterações com incidência no volume, natureza, morfologia ou cromatismo, que tenham de realizar-se nas proximidades de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, podem alterar a especificidade arquitetônica da zona ou perturbar significativamente a perspectiva ou contemplação do bem.

Constata-se assim que, em alguns países mais cedo, em outros mais tarde, se começou a buscar a preservação de uma ambiência, conjugando a vitalidade urbana com o meio ambiente e a conservação dos bens culturais. Isso também se constatará pelo que vem adiante.

  1. Diplomas internacionais que tratam da proteção do entorno dos bens culturais

Quanto aos diplomas internacionais, cabe, inicialmente, citar a Carta de Veneza, de 1964, que, em seu art. 6º, dispôs:

Artigo 6º – A conservação de um monumento implica a preservação de um esquema em sua escala. Enquanto subsistir, o esquema tradicional será conservado, e toda construção nova, toda destruição e toda modificação que poderiam alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas.

Por sua vez, a Convenção de Nairobi, realizada pela UNESCO em 1976, em seu inciso I, fixou as seguintes definições:

Para os fins da presente recomendação:

  1. Compreende-se por “conjunto histórico ou tradicional” todo agrupamento de construções e de espaços, aí compreendidos os sítios arqueológicos e paleontológicos, constituindo uma criação humana no meio urbano como no meio rural, cuja coesão e valor são reconhecidos do ponto de vista arqueológico, arquitetônico, histórico, pré-histórico, estético ou sociocultural. Entre esses “conjuntos”, que são de uma imensa variedade, pode-se distinguir, notadamente, os sítios pré-históricos, as cidades históricas, os quarteirões urbanos antigos, as aldeias e lugarejos, assim como os conjuntos monumentais homogêneos, estando entendido que estes últimos deverão ser conservados o melhor possível na sua integralidade.
  2. Entende-se por “entorno” dos conjuntos históricos ou tradicionais, a moldura natural ou construída que afeta a percepção estática ou dinâmica destes conjuntos ou que está a eles ligada de modo imediato ou por laços sociais, econômicos ou culturais.
  3. Entende-se por “salvaguarda” a identificação, a proteção, a conservação, a restauração, a reabilitação, a manutenção e a revitalização dos conjuntos históricos ou tradicionais e de seu entorno.

A recente Declaração sobre a conservação do entorno edificado, sítios e áreas do patrimônio cultural, adotada em Xi´An, na China, em outubro de 2005, por ocasião da XV Assembléia Geral do Icomos (International Council on Monuments and Sites) preconizou que:

O entorno de uma edificação, um sítio ou uma área de patrimônio cultural se define como o meio característico seja de natureza reduzida ou extensa, que forma parte de – ou contribui para – seu significado e caráter peculiar.

Além dos aspectos físicos e visuais, o entorno supõe uma interação com o ambiente natural; práticas sociais ou espirituais passadas ou presentes, costumes, conhecimentos tradicionais, usos ou atividades, e outros aspectos do patrimônio cultural intangível que criaram e formaram o espaço, assim como o contexto atual e dinâmico de natureza cultural, social e econômica. 

É verdade que tanto a Carta de Veneza como a Declaração de Amsterdã, resultantes, a primeira, do II Congresso Internacional do Icomos, em 1964, e, a segunda,  do Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu, de 1975, já propunham uma nova noção e conseqüente ampliação do conceito de monumento, recomendando a preservação de obras consideradas modestas, desde que tivessem adquirido significação cultural, bem como a proteção de conjuntos, bairros e aldeias que apresentassem interesse cultural. Esse vínculo entre o patrimônio cultural e a memória coletiva veio a ser consagrado na Constituição Brasileira de 1988.

Importante transcrever a primeira parte do art. 7º da Carta de Veneza:

Artigo 7º – O monumento é inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situa. (……).

Por sua vez, disse a Declaração de Amsterdã:

  1. a) Além de seu inestimável valor cultural, o patrimônio arquitetônico da Europa leva todos os europeus a tomarem consciência de uma história e destino comuns. Sua conservação é, portanto, revestida de uma importância vital.
  2. b) Esse patrimônio compreende não somente as construções isoladas de um valor excepcional e seu entorno, mas também os conjuntos, bairros de cidades e aldeias, que apresentam um interesse histórico ou cultural.
  3. c) Essas riquezas são um bem comum a todos os povos da Europa, que têm o dever comum de protegê-las dos perigos crescentes que a ameaçam: negligência e deterioração, demolição deliberada, novas construções em desarmonia e circulação excessiva.
  4. d) A conservação do patrimônio arquitetônico deve ser considerada não apenas como um problema marginal, mas como objetivo maior do planejamento das áreas urbanas e do planejamento físico territorial.(………………………………………………………….).

Como bem apontam Funari e Pelegrini[7], essa mudança de escala no enfoque do patrimônio possibilitou a contextualização estética, social e cultural do bem e consolidou o desenvolvimento da discussão sobre as áreas de entorno do patrimônio edificado, estabelecendo, ainda, a necessidade de integração dos centros históricos na dinâmica das cidades.

III. A proteção do entorno no Brasil

No Brasil, a noção de entorno esteve tradicionalmente ligada à “visibilidade” do bem, sem considerar a sua ambiência. Vê-se do art. 18 do Decreto-lei 25, de 1937, que instituiu o tombamento:

Art. 18 – Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto.

No dizer de Cláudia Lage[8], as cidades inicialmente tombadas, e aí se encontram as cidades de Minas – a maioria com tombamento em 1938 -, não têm definição do perímetro tombado, excluindo Diamantina e São João Del Rei. Um dos motivos é que, naquele momento, essas cidades estavam estagnadas, sem perspectivas de crescimento. Portanto, tombava-se a cidade como um todo. Posteriormente, se fez a delimitação de Ouro Preto, inclusive com marcação topográfica, mas o conceito foi “até onde a vista alcança”, principalmente pelas características da paisagem envoltória, que influía de forma definitiva na leitura do bem tombado.

Entretanto, a noção de entorno de proteção, ou área circundante mediata, é bem mais vasta, impondo servidões non aedificandi ou limitando a altura dos imóveis projetados.

Por outro lado, a área de entorno passa a ser protegida, juntamente com o imóvel a ser preservado, a partir do momento em que, iniciado o processo de tombamento e notificado o proprietário, passa o bem a ser provisoriamente tombado, tendo em vista o que diz o parágrafo único do art.10 do Decreto-lei 25/37:

Parágrafo único – Para todos os efeitos, salvo a disposição do art. 13 desta lei, o tombamento provisório se equiparará ao definitivo.

O mencionado art. 13 trata da transferência de propriedade ou do deslocamento físico do bem tombado.

O proprietário, ao ser notificado do início do processo de tombamento, deve, portanto, considerar que o bem e sua projeção de entorno precisam ser mantidos como estão, pois já se encontram sob os efeitos provisórios do tombamento. Ademais, o entorno, como extensão do bem tombado, deve acompanhar os efeitos gerais do tombamento.

Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, vendo-se parte de dois gigantescos edifícios construídos recentemente

Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Recife, vendo-se parte de dois gigantescos edifícios construídos recentemente

A respeito da matéria, cite-se a lição de Sonia Rabello de Castro[9]:

Não se deve considerar que prédio que impeça a visibilidade seja tão somente aquele que, fisicamente, obste, pela sua altura ou volume, a visão do bem. (…) Pode acontecer que prédio, pelo tipo da sua construção ou pelo revestimento ou pintura, torne-se incompatível com a visão do bem, inserida no conjunto que o rodeia. Entende-se, hoje, que a finalidade do art. 18 do Decreto-lei 25/37 é a proteção da ambiência do bem tombado (…).”

Este entendimento é, igualmente, consagrado pela legislação francesa, que, embora limite o campo de visibilidade a um perímetro de 500 metros a partir do bem protegido, subordina a proteção do entorno, pelo Código de Patrimônio, a duas condições: a natureza dos trabalhos a serem realizados e a noção de campo de visibilidade, que refere-se à covisibilidade, isto é, à visão conjunta do monumento protegido e do imóvel que se pretende alterar.

Como frisa Cláudia Lage[10], faz parte da cultura dos povos europeus a definição do perímetro de entorno de forma aritmética ou geométrica, porque a ambiência já está intrínseca no tecido urbano. Ainda assim, a Lei francesa nº 66-1042, de 30 de dezembro de 1966, que modificou a Lei de 1913, permitiu que a distância de 500 metros pudesse ser ultrapassada, com a concordância da comuna interessada, como foi o caso do Palácio de Versailles, cujo perímetro de proteção é de 2.000 metros, a partir do quarto do Rei. Além disso, o juiz administrativo pode considerar outros critérios para concluir se um imóvel se encontra ou não dentro do campo de visibilidade de um monumento histórico.

A Lei nº 6.513, de 20 de dezembro de 1977, que dispôs sobre a criação de áreas especiais e locais de interesse turístico e sobre o inventário com finalidades turísticas dos bens de valor cultural e natural, considerada a primeira lei que tratou, efetivamente, sobre a disciplina urbanística no Brasil, ainda que setorialmente, dispôs em seu art. 19:

Artigo 19 – As resoluções do CNTur, que declararem Locais de Interesse Turístico, indicarão:

I – Seus limites; 

II – Os entornos de proteção e ambientação

III – Os principais aspectos e características do Local; 

IV – As normas gerais de uso e ocupação do Local, destinadas a preservar aqueles aspectos e características, a com eles harmonizar as edificações e construções, e a propiciar a ocupação e o uso do Local de forma com eles compatível.

Consideramos de suma importância o inciso II do art. 19 da Lei nº 6.513/77, porque, pela primeira vez, em um diploma legal brasileiro, a ambiência é expressamente citada, na definição de entorno, juntamente com a visibilidade, que já constava do Decreto-lei 25, de 1937.

  1. O entorno dos bens culturais em juízo

O Ministério Público Federal ajuizou em Pernambuco, em 2005, ação civil pública na qual obteve sentença judicial favorável, determinando a demolição das obras dos edifícios Píer Maurício de Nassau e Píer Duarte Coelho, em construção no Cais de Santa Rita, no Centro Histórico do Recife. O Parquet Federal havia ingressado com a ação antes do início das obras, contra Moura Dubeux S.A., o município do Recife e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para impedir a construção dos dois espigões.

A Analista Pericial em Arquitetura da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão, Ludimila Lamounier, produziu informação técnica nos seguintes termos:

Os conjuntos antigos, como é o caso do centro histórico do Recife, devem ser compreendidos pelo observador como um todo arquitetônico e não como parte de uma paisagem urbana heterogênea. A vizinhança é extremamente importante, pois ela tem a função de proteger a visibilidade do bem. Essa proteção deve ser não apenas no sentido de obstrução ou redução de visibilidade por meio do aspecto físico da construção, ou seja, altura ou volume. O sentido deve ser entendido de modo mais amplo, desde que seja prejudicada a harmonia na visibilidade do bem, de forma a alterar a ambiência desse bem tombado.”

No curso da ação, em resposta a um dos quesitos formulados – qual seja, o que entende por “visibilidade em sentido amplo” e como pode aplicar esse conceito a um ambiente degradado, como é o caso da área objeto da ação –, disse o perito do juízo:

Entende-se por visibilidade, enquanto qualidade do visível, tudo o que se pode ver; claro; aparente; perceptível. Este é o entendimento do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.”

Em outra passagem, esclareceu, ainda, quanto ao bairro São José, onde  se situa a obra:

O fato do ambiente, no momento, encontrar-se degradado não significa, necessariamente, que permanecerá assim indefinidamente.

Conclui-se que, apesar da degradação de fato do núcleo do bairro São José, não significa que o mesmo esteja destruído e não possa ser restaurado, preservando-se a arquitetura e o traçado urbano  característicos desse núcleo de momentos históricos sequenciais.”

Entretanto, em resposta ao quesito “I” do empreendedor, que indagava se o projeto harmonizava-se com a legislação em vigor, disse o perito:

Dois argumentos podem ser mencionados para a resposta: por um lado, os do Iphan, negando categoricamente que a área se encontre sob o manto da proteção do patrimônio histórico: por outro lado, o executivo do Recife, que aprovou o projeto por estar de acordo com a legislação municipal pertinente.”

O TRF/5ª Região liberou a construção, através do seguinte acórdão (excertos):

  1. Ainda que se dê ao vocábulo “vizinhança” um significado mais largo, a lógica recomenda que se imponham limites físicos e objetivos às áreas demarcadas, sob pena de se cair na falácia de se considerar que todo e qualquer bem localizado nas proximidades da coisa tombada seja alcançado por aquele conceito e, em conseqüência, pelos efeitos do tombamento.
  2. O dispositivo legal em comento elenca requisitos simultâneos  para que a Autarquia responsável pela preservação dos bem tombados a nível nacional possa emitir parecer prévio acerca da viabilidade de qualquer construção, sendo-lhe conferido o poder discricionário de delimitar, no mapa, as áreas de proteção.
  3. In casu, restou suficientemente demonstrado que era desnecessária a manifestação do IPHAN sobre a edificação dos Píeres Duarte Coelho e Maurício de Nassau, quando da tramitação dos respectivos projetos perante a Prefeitura, tendo em vista que tal Instituto admitiu que o terreno onde os referidos prédios estão sendo construídos está fora da poligonal de entorno dos monumentos tombados nos Bairros de São José, de Santo Antônio e do Recife, de modo que o aludido ente não detinha competência para aprovar ou, não, a execução dos empreendimentos em tela.
  4. Sendo o Município dividido em zonas, conforme a Lei de Uso em Ocupação do Solo local, e, tendo aquela entidade verificado que o terreno onde estão sendo construídos os edifícios não se situa em Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural, mas em Zona Especial do Centro Principal, não se vislumbra qualquer pecha de ilegalidade na licença concedida à empresa-ré para levar adiante tal projeto imobiliário. (Acórdão AC 439086/PE, apelação cível, Relator Desembargador Federal Luiz Alberto Gurgel de  Faria, Diário da Justiça, 03/09/2008).
Foto alterada digitalmente excluindo as torres da Moura Dubex (situação antes de 2007)

Recife antigo, em imagem alterada digitalmente excluindo as torres da Moura Dubex (situação antes de 2007)

Situação atual do recife antigo, com as torres já construídas

Situação atual do recife antigo, com as torres já construídas

O mais incrível é que, à época, a Prefeitura de Recife estava elaborando uma proposta, a ser encaminhada à UNESCO, solicitando a inclusão de três de seus bairros, Recife, São José e Santo Antônio, na lista do Patrimônio Mundial. Ainda que o conjunto do núcleo urbano, formado pelos três bairros, não estivesse tombado pelo IPHAN, mas apenas prédios isolados daqueles lugares, e que o dossier de candidatura para inscrição deva ser encaminhado à UNESCO pelo país onde está localizado o bem, e não pela Prefeitura do município, certo é que a pretendida tutela internacional restou flagrantemente prejudicada pela posição adotada pelo órgão federal de proteção do patrimônio cultural.

Entretanto, o mesmo Tribunal Regional, em outra oportunidade, assim se manifestou:

Administrativo. Nunciação de obra nova. Estação Ferroviária de Caruarú. Obra promovida pelo Município. Bem tombado como patrimônio histórico e artístico. Impossibilidade de sofrer transformação sem prévia autorização do órgão competente. Improvimento do apelo.

  1. Ação de nunciação de obra nova, ajuizada contra reforma promovida pela Prefeitura Municipal de Caruarú no entorno da Estação Ferroviária daquele município.
  2. Bem tombado como patrimônio histórico e artístico, não podendo ser objeto de transformação sem prévia autorização do órgão competente, no caso, a Fundarpe – Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, por se tratar de tombamento levado a termo com lastro em lei estadual. Improvimento do recurso. (Acórdão AC 416717/PE, Rel. Desembargador Federal Ivan Lira de Carvalho (substituto), Diário da Justiça, 27/01/2008, p. 1621).       

Por sua vez, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, examinando recurso que envolvia a proteção do entorno,  decidiu que:

  1. A obrigatoriedade do registro do tombamento não incide sobre os imóveis que estão no entorno daquele tombado. Não cabendo ao recorrido alegar desconhecimento da restrição, vez que notificado acerca do auto de infração lavrado pela Prefeitura Municipal de Belém, Secretaria Municipal de Urbanismo, em 06/06/95, no sentido de que o imóvel de sua propriedade estava em desacordo com a Lei Municipal n° 7.400/88.
    2. Conforme imagem aérea de fl. 119, a distância entre a Igreja tombada e o imóvel objeto da Ação Civil Pública é claramente comprobatória de que alterações na fachada deste em nada prejudicará a visibilidade da referida Igreja ou a harmonia do conjunto arquitetônico local, que, a seu turno, se encontra 75% alterado, conforme afirma o vistor oficial.
    3. A reforma levada a efeito pelo recorrido independe de autorização do IPHAN, vez que o seu imóvel não se insere no entorno de imóvel tombado, sendo descabida a reposição da fachada original do prédio.
    4. Apelação do Ministério Público Federal improvida e remessa oficial, tida por interposta, prejudicada. (AC 1997.39.00.003059-4/PA, apelação, Relatora Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, publicação 20/03/2006).
    [11]

Em relação aos Tribunais de Justiça dos Estados, a situação não é muito melhor, como é possível constatar, exemplificativamente, através dos acórdãos seguintes:

Ementa: BEM TOMBADO. LIMITAÇÕES À VIZINHANÇA. SERVIDÃO ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. DESVIO DE FINALIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA.- Os imóveis localizados no perímetro do entorno de bem tombado se submetem a servidão administrativa que impede a realização de obras que prejudiquem a visibilidade da coisa protegida.- As limitações relativas à vizinhança não podem estar voltadas a valores constatados no bem em si próprio considerado, devendo sempre ser relacionados à visibilidade do imóvel tombado, sob pena de sofrerem restrições que alcançam a própria coisa tombada. – Configura lesão a direito líquido e certo do proprietário o embargo a obra de reforma de sua edificação com fulcro em suposto valor histórico, artístico ou cultural do imóvel, se não se trata de bem tombado e não há risco de lesão à visibilidade do prédio de proteção reconhecida, mediante a observância do processo administrativo adequado. – Recurso provido. (TJ/MG, Processo nº 1.0508.07.003078-0/001(1), Relatora Heloisa Combat, publicado em 26/02/2008).

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TOMBAMENTO – EDIFICAÇÃO. ENTORNO DA ÁREA DESTINADA AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL DE SÃO TOMÉ DAS LETRAS – PROVA DE INTERFERÊNCIA NA AMBIENTAÇÃO LOCAL – INEXISTÊNCIA. Se, do conjunto probatório não restar suficientemente demonstrado que a edificação promovida pelos réus encontra-se entorno da área tombada e/ou tenha interferido no conjunto arquitetônico descaraterizando-o, não se há falar em sua demolição. NEGARAM PROVIMENTO. (TJ/MG, Processo nº 1.0693.03.022323-6/001(1), Relator EDILSON FERNANDES,  Publicado em 03/02/2006).

  1.  Conclusão

O antropólogo Gilberto Velho explica que é sempre muito delicado lidar com medidas de política urbana, quanto atingem setores da sociedade civil.

Desencontros e impasses entre as administrações municipais e a política federal de tombamento são freqüentes. Ao longo de anos tratando com o patrimônio histórico brasileiro, lembra de casos ocorridos quando era membro do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Prefeitos de cidades históricas de Minas Gerais conseguiram, muitas vezes, erguer construções, como praças com repuxos coloridos, estações rodoviárias e estádios esportivos, que feriam agudamente as áreas tombadas. As novas obras, além de representar aspirações de grupos políticos e empresariais, muitas vezes contavam com o apoio da população local.

Entretanto, o exemplo mais significativo diz respeito ao bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, cujo desenvolvimento se iniciou com a abertura do Túnel Velho, em 1892,  ligando-o ao bairro de Botafogo.

Copacabana, até então, era um bairro de pescadores, com algumas chácaras, poucos caminhos e algumas ruas precárias.

Com a expansão da capital da República, seu desenvolvimento foi rápido e já na década de 1920 era um bairro importante, cujos marcos eram o Forte de Copacabana, de um lado, e o Forte do Leme, de outro.

A inauguração do Copacabana Palace, construído entre 1917 e 1923, no dia 13 de agosto de 1923, foi resultado do desejo comum do Presidente da República Epitácio Pessoa e do hoteleiro Octávio Guinle, de construir no Rio um hotel digno de receber autoridades e personalidades estrangeiras para as comemorações do Centenário da Independência, em 1922. Para que tal projeto fosse viabilizado, foram concedidos benefícios fiscais e a licença para funcionamento de um cassino.

A construção não chegou a ficar pronta para as comemorações pretendidas. Porém, o bairro, até então ocupado por poucas casas, multiplicou rapidamente as áreas residenciais e os estabelecimentos comerciais.

Ainda transcrevendo o artigo de Gilberto Velho[12], “o ritmo de ocupação do bairro vai se acelerando e, com a tecnologia dos elevadores e do concreto armado, transforma-se no primeiro bairro brasileiro a ser ocupado predominantemente por edifícios de mais de oito andares.”  A população cresce vertiginosamente e chega a alcançar, nos anos 1960, 200 mil habitantes.

Copacabana, diz o respeitado antropólogo, passa a ser vendida como um paraíso à beira-mar, com uma bela paisagem, praia limpa e ar saudável. As casas vão sendo derrubadas e, nos anos 1970, muito poucas restam. Os prédios menores são igualmente demolidos, para darem lugar a prédios mais modernos e elevados. Alteram-se as características do bairro, que era eminentemente residencial, com o desenvolvimento de um intenso comércio e de atrações culturais, como cinemas, boates, casas de show e teatros.

Intencionalmente, no início deste trabalho, referimos a ocupação das cidades na época medieval e o que agora estamos a relatar – e que não ocorreu, nem ocorre, exclusivamente com Copacabana, embora este seja o exemplo mais notório – nos remete ao comportamento dos citadinos daquele período histórico.

O bairro passa a ser um local privilegiado da sociedade de consumo, cujo crescimento gera novas aspirações e expectativas. Inicialmente, as famílias de classe média do Rio de Janeiro, residentes em outros bairros, realizam o projeto de mudar-se  para Copacabana. A seguir, moradores de outros estados e estrangeiros engrossam o contingente de novos moradores. Sendo o Rio, até 1960, a capital da República, em Copacabana foram residir políticos e burocratas, bem como os representantes do corpo diplomático e das grandes empresas internacionais.

Por outro lado, como morar em Copacabana era o sonho alimentado por todos, pois significava prestígio social, grandes prédios de pequenos apartamentos conjugados, ou de sala e quarto, foram construídos para abrigar uma população mais modesta, grande parte constituída de inquilinos. Muitos destes prédios vieram a ser tão estigmatizados que tiveram até que mudar de número, como é o caso do Barata Ribeiro, 200.

Exatamente por causa do apelo social, “Copacabana foi super ocupada, construída e desgastada. A muralha de prédios erguidos sem preocupação e critérios urbanísticos bloqueou em grande parte a paisagem e afetou o clima, fazendo com que a diferença de temperatura entre a Avenida Atlântica e as ruas situadas no interior do bairro pudesse chegar a mais de 3 graus.”[13] O aumento descontrolado de automóveis e ônibus agravou a poluição do ar e sonora, além de gerar grandes engarrafamentos.

Atualmente, Copacabana é o bairro do Brasil com a mais elevada proporção de idosos. São as pessoas que chegaram nos anos 40, 50 e 60 do século XX e  optaram por permanecer no bairro ou em razão do relativo conforto ainda existente ou por não terem recursos para morarem em  bairros melhores, mais sossegados e menos decadentes.

Como a conclusão deste trabalho foi baseada, fundamentalmente, no artigo de Gilberto Velho[14], que apresenta como emblemáticos os erros cometidos com o bairro de Copacabana, torna-se obrigatório que, baseando-nos no exemplo da  “Princesinha do Mar”, reflitamos,  na esteira das conclusões do autor, sobre a problemática geral das cidades, do ponto de vista do planejamento urbano responsável, do preservacionismo e do meio ambiente.

A influência social, cultural e econômica reflete-se na organização das grandes cidades, ou de seus bairros mais importantes. Esses reflexos dominantes irão, por sua vez, influir nas imagens das cidades de médio e pequeno porte, tornando descartáveis os imóveis originários, representativos da cultura e da memória coletiva.[15]

Assim, os elementos oriundos de épocas passadas são facilmente substituídos pelas novas formas de representação dos valores socioeconômicos vigentes.

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[1]     LE GOFF, Jacques, Por amor às cidades. São Paulo: Unesp, 1998, p. 90 e 139.

[2]     LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito Ambiental. Rio: Elsevier, 2008, p. 124.

[3]    LABARRE, Eric Mirieu de. Droit du patrimoine architectural.  Paris: Litec, 2006, p. 1/3.

[4]     LEUZINGER e CUREAU, op. cit., p. 134.

[5]  LABARRE, op. cit., p. 163.

[6]MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A proteção constitucional do patrimônio cultural. http://www.mp.rs.gov.br/ambiente/doutrina/id9.htm.

[7]    FUNARI, Pedro Paulo e PELEGRINI, Sandra C. A. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2006, p. 32.

[8]     LAGE, Cláudia Maria Freire. Analista pericial da 4ª CCR. Correspondência trocada com a autora em 2007.

[9]  CASTRO, Sonia Rabello de. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 118.

[10] Correspondência já referida.

[11] O acórdão em exame dizia respeito ao entorno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Pará.

[12] VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Rio de Janeiro:  MANA 12(1): 237-248, 2000.

[13] VELHO, Gilberto. Op. Cit.

[14]. Idem.

[15] .Veja-se,a respeito, LANDIM, Paula da Cruz. Desenho de paisagem urbana. As cidades do interior paulista. São Paulo: Unesp, 2003, p. 16 e 17.

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Obs: Sobre a destruição do patrimônio em Recife:

https://marcozero.org/um-vislumbre-de-quem-manda-de-verdade-no-recife/

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