Os negros que foram transportados como escravos para o Brasil eram originários das mais diversas tribos ou nações africanas. O historiador Flávio Guerra, conhecido por seus estudos sobre igrejas pernambucanas, menciona, por exemplo, as tribos Benguela, Cambindas, Angolas, Cassanges, Moçambiques, Congos, e outras, como sendo constitutivas dos ‘povos’ negros do Brasil. Assinala que “cada uma dessas nações tinha o seu dialeto, seus costumes, ritos sagrados, religiosos, etc”, e que, “transportados para terras longes e estranhas, como humilhantes escravos, uniam-se então na dor e na miséria, constituindo-se muitas vezes em novas nações, com costumes mesclados, a receber influências dos hábitos isolados de cada uma, ritos ancestrais, adaptados e harmonizados com o novo meio ambiente e sua condição de escravos” (1).
O mesmo autor também indica que essa tendência associativa dos africanos “transbordou dos quilombos para as próprias cidades, constituindo-se religiosamente a seu modo, no respeito, porém, aos princípios católicos da colonização portuguesa“.
Essa tendência aglutinadora estava diretamente ligada ao surgimento de irmandades, que eram instituídas mediante um compromisso. A respeito dessas associações, e sobre a autenticidade da fé dessas pessoas, vale ressaltar a seguinte informação:
É necessário romper com a ideia generalizada de que, primeiramente, todo escravo – e, por conseguinte, todo liberto – não se convertia à religião cristã, e fingia aceitá-la para se proteger, continuando a cultuar entidades e deuses africanos por meio de santos católicos. Nem sempre isso funcionou dessa forma e tampouco isso ocorreu em todas as regiões e durante todo o período escravista. Houve muitos africanos além de crioulos e de mestiços – escravos e forros – que adotaram a religião cristã e se tornaram devotos fervorosos (2) .
Dentre essas múltiplas nações africanas aqui presentes destacava-se o Congo. Eles passaram a ter uma primazia sobre os negros de outras tribos africanas, e obtiveram o direito de ‘eleger’ um rei – o Muchino riá Congo – que possuía jurisdição sobre os membros de outras nações que morassem no seu distrito, fossem eles escravos ou alforriados (libertos mediante pagamento).
Dentre as principais devoções, destacavam-se santos de origem africana, de cor negra – dentre os quais figuravam Santa Efigênia (responsável por disseminar o cristianismo na Etiópia), Santo Elesbão da Abissínia e o monge franciscano São Benedito.
Mas, apesar de existirem irmandades em nome desses santos, o centro da devoção negra era eminentemente mariano: a padroeira principal era Nossa Senhora do Rosário.
Essa invocação surgiu como resultado da disseminação do Rosário, que vem do latim rosarium, e que, por sua vez significa jardim de rosas. O Rosário é uma oração que foi originalmente formada por um conjunto de 150 Ave-Marias (a célebre oração composta com trechos dos Evangelhos e completada pela Igreja), e seu número era em alusão aos 150 salmos da Bíblia (após a inclusão dos Mistérios Luminosos pelo papa João Paulo II, esse número aumentou). E a invocação de Nossa Senhora do Rosário venera a Virgem Maria, Mãe de Jesus, enquanto sendo a Rainha a quem se oferece o rosarium. O mesmo nome também se dá ao instrumento físico pelo qual se contam as Ave-Marias, sendo que o nome Terço provém do fato de que era 1/3, ou a terça parte de um Rosário (3 terços). Além do significado espiritual, a aparência física dos terços e rosários era simpática aos negros, e lembrava os colares e enfeites que usavam – sem dúvida, um fator que deve ter facilitado a familiarização por essa devoção.
Pode-se ter uma ideia da profundidade dessa devoção ao ler, por exemplo, essa descrição da irmandade do Rosário em Recife:
“Os homens pretos e cativos se mostram tão afetuosos no amor e no serviço da Mãe de Deus, a Senhora do Rosário, que eles mesmos, ainda que pobres, resolveram fundar uma formosa igreja em que eles são os fundadores e administradores. É este um templo de curiosa e suntuosa estrutura, e, o seu frontispício, pomposa fábrica de pedra branca, é admirável desempenho da arquitetura edificativa“(4).
Essas irmandades inicialmente exerciam suas atividades dentro da própria igreja matriz do local, onde geralmente dispunham de um altar próprio. Mas, à medida em que cresciam e conseguiam mais autonomia, construíam suas próprias igrejas. Assim, nas principais cidades brasileiras que possuam um centro histórico, haverá sempre a presença de uma igreja construída para uso das irmandades negras, e na maioria das vezes dedicada a Nossa Senhora do Rosário.
A existência dessas diversas irmandades espalhadas pelo país, quando observadas fora da questionável ótica da luta de classes, demonstra que, apesar de todas as mazelas sociais decorrentes da escravidão, a Igreja não sonegava aos negros a condição de filhos de Deus. Quando não tinham seu próprio templo, podiam ter o seu altar na igreja matriz, ao lado dos das demais irmandades. E o fato de serem normalmente ministrados a eles todos os sacramentos – Batismo, Eucaristia, Matrimônio, etc. – demonstra que não passa de um mito a difundida ideia de que, para a Igreja, os negros ‘não teriam alma’. Tampouco as irmandades eram instrumento de ‘dominação’, tendo em vista que eram autônomas e geridas pelos seus próprios membros – todos eles negros.
Assim, se na vida laica e civil os negros viviam uma situação muitas vezes dramática, no âmbito espiritual, desde que preenchessem os mesmos requisitos que também eram exigidos das demais pessoas, eles realmente tinham assegurada a sua dignidade. As igrejas dessas irmandades são testemunhas perenes desse fato.
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Notas e referências:
– (1) Guerra, Flávio, Velhas igrejas e subúrbios históricos, Recife: Fundação Guararapes, 1970, p. 111
– (2) Paiva, Eduardo França, Depois do cativeiro: a vida dos libertos nas Minas Gerais do século XVIII, in As Minas setecentistas, Maria Efigênia Lage de Resende (coord.), Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007
– (3) Pasquini, Pio; Low, Giuseppe, verbete Rosario, Enciclopedia Cattolica, Vol. X, Città del Vaticano, 1953
– (4) Couto, Domingos Loreto, Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Vol XXIV, 1904
– Borges, Célia Maia, Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: Devoção e solidariedade em Minas Gerais – séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora- MG: Editora da UFJF, 2005
– Farias, Sara Oliveira. Irmandades de Cor, de caridade e de crença: A Irmandade do Rosário do Pelourinho na Bahia do Século XIX. Salvador, 1997
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muito bom
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