Conforme já foi narrado anteriormente, os primeiros bandeirantes chegaram a essa região do Brasil no final do século XVII, atraídos pela possibilidade de encontrar ouro e pedras preciosas naquele lugar que os índios chamavam de Itaberaba-assu – “montanha resplandecente e alta“. Na linguagem corriqueira, a montanha ficou conhecida como Serra de Sabarabuçu, e daí derivou “Sabará“, o nome do rio e da primeira vila daquelas cercanias.
Com a descoberta do ouro, as povoações cidades foram crescendo, o que trazia também problemas, incluindo os de ordem moral. A ânsia por riquezas materiais, as disputas e as libertinagens eram coisas relativamente comuns, e isso acabou por despertar em algumas pessoas um desejo de se retirar para locais mais afastados, onde pudessem viver mais próximos do mundo espiritual.
Surgiram então os ermitões (‘irmitoens‘), que, à maneira dos antigos anacoretas do deserto, retiravam-se da agitação das cidades rumo a lugares isolados desses tumultos da sociedade. Eles geralmente alternavam períodos de isolamento com peregrinações pelas vilas, caminhando quase sempre com pequenos oratórios. Não eram membros do clero (portanto eram leigos, e muitas vezes de pouca instrução), viviam de esmolas e doações, e alguns deles se estabeleciam junto a igrejas ou capelas mais isoladas – prática que acabava sendo benéfica, pois cuidavam desses templos e impediam que ficassem abandonados.
Em Minas Gerais, ao menos dois ermitões se destacaram historicamente: o Irmão Lourenço, que se embrenhou pelas matas da Serra do Caraça e construiu a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens (que mais tarde se tornaria o Colégio do Caraça), e Antônio da Silva Bracarena, que escolheu o alto da Serra do Sabarabuçu para erguer sua ermida.
Bracarena e a ermida
Naquela época a tradição oral contava que, por volta de 1760, duas meninas haviam visto, nas cercanias da serra, a Virgem Maria com Jesus nos braços. Uma delas era muda de nascença, e, desde que esse fato ocorreu, passou a falar, contando o ocorrido a todas as pessoas. Isso bastou para atrair devotos, que passaram a frequentar o alto da serra, transformando-o local de oração.
No ano de 1767, motivado por essa devoção, e portando uma autorização do bispado de Mariana, Bracarena se empenhou em construir sua ermida no ponto mais alto daquela rochosa montanha, a mais de mil e setecentos metros de altura. Com base na tradição que já existia no local, a igreja deveria ser dedicada a Nossa Senhora da Piedade – invocação que venera a Virgem Maria no momento em que recebeu seu Filho morto nos braços, após a crucificação, e que coincidia com a visão relatada pelas meninas.

Uma das fotografias mais antigas da ermida
Bracarena foi conduzindo a construção com algumas dificuldades, pois o local era de difícil acesso, e era necessário um considerável esforço para levar alguns materiais para o alto da serra. Nessa empreitada, ele gastou todos os seus bens, passando a depender de doações. A igreja ficaria pronta por volta de 1778, e ficaria sob a jurisdição da paróquia de Caeté, que era a cidade mais próxima.
Desde então, a montanha passou a ser chamada “Serra da Piedade”, e se tornou centro de romarias e palco de graças alcançadas. Bracarena viveu isolado no alto da montanha até falecer, em 1784. Mas seu exemplo também atraíra outros “irmitoens“, que passaram a residir no local, abrigados em celas situadas atrás da capela.
Embora a capela fosse modesta, recebeu um altar barroco ornado de uma bela imagem de Nossa Senhora da Piedade, atribuída ao Aleijadinho.
Saint- Hilaire e a Irmã Germana
O célebre naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em viagem por terras brasileiras para estudos de plantas nativas, visitou a serra no ano de 1818, e relatou que, da plataforma em frente à igreja, havia descoberto o mais extenso panorama que lhe havia sido possível apreciar desde que chegara na Província de Minas. Acerca dos ermitões que estavam no local, descreveu:
Os eremitas que ocupam a espécie de monastério da Serra da Piedade são simples leigos. Usam um grande chapéu e uma batina, ou melhor uma espécie de ‘robe de chambre’ preto. Quando de minha viagem eles eram apenas três: dois pequenos mulatos muito ativos e um velho branco que, confesso, provocou-me grande desejo de rir, por seu ar distraído, por seu semblante rubicundo e sua cabeleira postiça, velha e dilatada (…).
No mesmo relato, Saint-Hilaire conta que residia na serra uma mulher cuja fama se espalhara pelas redondezas. Possuía costumes puros e conduta irrepreensível, e vivia em meio a jejuns e abstinência – apesar de ser leiga, ficara conhecida como “Irmã” Germana. Frequentemente entrava em êxtases, principalmente às sextas-feiras, quando permanecia com os braços em forma de cruz durante horas seguidas. Dois cirurgiões dos arredores declararam que o estado da devota era sobrenatural, e isso contribuiu para atrair milhares de pessoas à ermida. Um médico irlandês refutou à distância a declaração dos dois cirurgiões, dizendo que ela padecia de doença neurológica, mas, como ele nunca esteve na serra, sua opinião não chegou a ser considerada pelas pessoas.
Mesmo assim, o bispo de Mariana, Dom Cipriano da Santíssima Trindade – que, no entender de Saint-Hilaire era um homem ‘ajuizado e competente’ – proibiu a celebração de missas na serra, esperando, com isso, diminuir o afluxo de pessoas ao redor da Irmã Germana. Mas os fiéis continuaram a frequentar o local, e pediram diretamente ao rei de Portugal autorização para realização das missas: este autorizou a continuidade das celebrações, fazendo com que o local continuasse movimentado.
Saint-Hilaire relata que o padre confessor de Germana era desinteressado e caridoso, e não se mostrava impressionado pelo fenômeno. Desejava que homens competentes estudassem-na, e reclamou de que o único médico que questionou o caso havia tirado suas conclusões sem se dar ao trabalho de ver pessoalmente a enferma. Em seguida, o naturalista prossegue:
“Pedi para ver Germana e fui levado ao pequeno quarto onde ela ficava permanentemente deitada. Percebi seu rosto sob um grande lenço que se prolongava adiante de sua testa; pareceu-me não ter mais de 34 anos, idade que efetivamente lhe atribuíam. Sua fisionomia era doce e agradável, mas indicava grande magreza e debilidade extrema. Perguntei-lhe como se achava, e, com voz quase sumida, ela respondeu-me que se achava melhor do que merecia.”
A ‘Irmã’ Germana não viveu muito, vindo a falecer pouco tempo após a vista de Saint-Hilaire.
Outras personalidades
Após essa época, destacaram-se na Serra outras pessoas devotas, como o capuchinho Frei Luiz de Ravena, que fez melhorias na ermida e viveu no alto da montanha até sua morte, em 1871.
Com seu falecimento, somado à falta de um responsável pela ermida, o local ficou ameaçado pelo abandono, até que um sacerdote – o Monsenhor Domingos Evangelista Pinheiro, pároco da cidade de Caeté – decidiu organizar uma confraria, aproveitando as construções iniciadas por Frei Luiz. Assim, em 1878, foi fundada a irmandade leiga de Nossa Senhora da Piedade, com o objetivo de proteger e gerenciar o Santuário, e de edificar um asilo para meninas órfãs e outras pobres, filhas de escravos, nascidas após a Lei do Ventre Livre. O Asilo São Luiz da Piedade foi então construído no sopé da serra, e, atendendo a pedidos de muitas daquelas que ali cresceram, foi fundada também uma ordem para freiras – a Congregação Religiosa das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, que permanece no local até os dias de hoje dando assistência a crianças, jovens, enfermos e idosos.
No ano de 1876, por concessão do Papa Pio IX, foi instituído um jubileu anual, que desde então atrai muitos fiéis a este lugar durante o mês de agosto.
No ano de 1958, atendendo a pedidos de bispos mineiros e do governador do estado, o papa João XXIII concedeu prerrogativas litúrgicas de Padroeira do Estado de Minas Gerais à Santíssima Virgem, invocada sob o título de Nossa Senhora da Piedade. E a 31 de julho de 1960 ocorreu a solenidade de consagração do Estado de Minas Gerais a Nossa Senhora da Piedade. A cerimônia se realizou na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, com a presença de 40 Bispos mineiros, do então governador de Minas Gerais (Bias Fortes), autoridades civis e militares, religiosos, organizações da Arquidiocese e de cidades vizinhas, e imensa multidão popular.
O local, que foi alçado à condição de santuário, recebeu melhorias e foi ampliado, sobretudo quando ficou sob os cuidados do dominicano Frei Rosário Joffily. Em anos mais recentes, foram instalados no topo da montanha um observatório astronômico e uma base de radares da Aeronáutica, que são visualmente discretos e não interferem na beleza e tranquilidade do local.
A ermida da Serra da Piedade guarda ainda seu aspecto rústico, e permanece imersa no silêncio das alturas. Esse silêncio – que por si só já vale uma visita ao santuário – proporciona ainda hoje, da mesma forma que aos antigos ermitões, uma excelente possibilidade de sensibilização para as verdades eternas, que geralmente são asfixiadas pelo tumulto e pelo falatório da vida nas cidades.

Cume da Serra da Piedade visto a partir da cidade de Sabará

Imagem de Nossa Senhora da Piedade, atribuída ao Aleijadinho
“No confessionário, no púlpito e na direção das almas o segredo do êxito está em levá-los pelo amor a Deus, e não pelo temor… Um sermão aterrorizador tem um efeito muito efêmero. Quando se chega a inculcar o amor de Deus nas almas, as coisas deste mundo não desviam mais do seu divino Norte, a bússola da alma – o coração.”
Mons. Domingos Evangelista, fundador da Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade
__________________________________________
Referências:
– Carrato, José Ferreira, As Minas Gerais e os primórdios do Caraça, Belo Horizonte:Brasiliana, 1963
– Saint-Hilaire, Auguste de, Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974
– Santuário Nossa Senhora da Piedade
– Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade
– Serra da Piedade, Berço da Padroeira de Minas Gerais
– Sobre a Preservação da Serra