Igreja de Nossa Senhora do Desterro e Santa Teresa – Olinda, Pernambuco

Essa é uma igreja votiva – foi construída em cumprimento a um voto (promessa) feito por um herói da guerra contra os holandeses, o mestre de campo João Fernandes Vieira, durante a batalha do Monte das Tabocas, ocorrida em 3 de agosto de 1645. Essa informação é comumente apresentada no histórico da igreja, porém sem maiores detalhes sobre quem foi Fernandes Vieira, nem porque ocorreu essa batalha. Procuraremos, portanto, suprir essa lacuna aqui.

Contexto Histórico

No século XVII, após os problemas hereditários decorrentes da morte de Dom Sebastião, o trono de Portugal havia passado para o comando da Espanha. E a Espanha, por sua vez, enfrentava uma guerra de independência dos Países Baixos, dentre os quais estava a Holanda. Como forma de ampliar domínios e desestabilizar o império ibérico, as províncias neerlandesas criaram a Companhia das Índias Ocidentais , principalmente com o intuito de atacar os domínios espanhóis nos seus pontos mais fracos. E, dentre esses pontos que julgavam ser mais vulneráveis, estavam as terras brasileiras, particularmente Pernambuco e a Bahia.

Assim, no ano de 1630, tropas dessa Companhia conquistaram Olinda, onde fixaram um ponto de partida para o domínio de grande parte da região nordeste brasileira. Esse exército não era constituído por cidadãos comuns holandeses, mas por mercenários de diversas nacionalidades, sob o comando de oficiais da Holanda. E, sendo mercenários, eram recrutados dentre as camadas mais rudes de diversos países europeus. Isso fez com que os abusos não tardassem a aparecer em Pernambuco – execuções, torturas, estupros, saques, etc. – o que fez gerar, logo de início, uma grande indignação na população local. Some-se a isso o fato de que, além dos motivos bélicos e comerciais, os holandeses (também conhecidos como batavos) estavam decididos a propagar o calvinismo protestante em terras brasileiras (vários pregadores foram trazidos pra cá com essa finalidade). Assim, não poderia haver mistura de fatores mais explosiva para desencadear uma permanente situação de hostilidade.

Os luso-brasileiros logo se organizaram em uma resistência – liderada por Matias de Albuquerque – que usou como base um local fortificado, situado mais ao interior, chamado Arraial Velho do Bom Jesus. A partir dali, grupos efetuavam missões de ataque aos redutos dos invasores. Dentre os que lutaram sob as ordens de Matias de Albuquerque, estavam o português João Fernandes Vieira (que futuramente construiria a igreja do Desterro), o indígena Felipe Camarão, o líder negro Henrique Dias, o paraibano André Vidal de Negreiros, e muitos outros. Porém, após cerca de cinco anos (1635), a presença holandesa se fortaleceu muito, tornando insustentável a permanência dessa resistência. Após um prolongado bombardeio, o Arraial se rendeu. Alguns fizeram uma trégua com os batavos e permaneceram vivendo em Pernambuco (o caso de João Fernandes Vieira, que tinha vários engenhos de açúcar), ao passo que outros, que não aceitaram viver sob o domínio batavo, tiveram que promover um êxodo com suas famílias, rumo a Salvador, capital do Brasil.

Anos se passaram, outras batalhas ocorreram, quase sempre com desvantagem para os luso-brasileiros. Da Holanda, veio o conde Maurício de Nassau, que, mesmo tendo promovido um grande ataque marítimo a Salvador (1638), ganhou a fama de pacificador, pois conseguiu organizar o convívio e reduzir as hostilidades mútuas em Pernambuco.

Em 1640 o trono de Portugal foi restaurado, e o novo rei português assinou uma trégua com os holandeses. Porém, estes continuaram fixados no Nordeste, e, após Nassau ter voltado para a Europa, as inimizades se reacenderam. Aproveitando-se da ocasião, João Fernandes Vieira, que tinha juntado muitos recursos financeiros no comércio com os batavos, começou a organizar secretamente um movimento de luta armada.

A Batalha do Monte das Tabocas e a promessa de Fernandes Vieira

No ano de 1645, mesmo na vigência da trégua firmada entre Holanda e Portugal, eclodiu o grande levante planejado por Vieira, movimento que ficou conhecido como Insurreição Pernambucana. No entanto, evitava-se o confronto direto com os holandeses, pois havia necessidade de mais reforços, que estavam sendo enviados da Bahia (estavam a caminho as tropas indígenas de Filipe Camarão e os negros liderados por Henrique Dias, que tinham se exilado na capital baiana).

Muitos civis haviam se juntado a Vieira, e estavam recebendo treinamento do Sargento-Mor Antônio Dias Cardoso, um veterano que havia sido enviado especialmente para essa finalidade. Mas as tropas batavas se anteciparam e saíram de Recife para caçar os rebeldes, que recuaram em direção ao interior. Quase ao mesmo tempo, um grupo de holandeses, apoiados por índios da tribo tapuia, invadiram, durante a missa,  uma igreja em Cunhaú, no Rio Grande do Norte e promoveram uma chacina, matando todos os que lá estavam, incluindo o sacerdote (essas vítimas foram beatificadas por João Paulo II). Com essa atitude, esperavam aumentar o terror sobre os insurrectos, mas acabou servindo para incrementar neles mais vontade de lutar.

Duas semanas depois desse massacre, Fernandes Vieira, Antonio Dias Cardoso e mais algumas centenas de homens estavam acampados no Monte das Tabocas – situado no início da zona agreste pernambucana, a uns 60 km do litoral – quando foram alcançados pelas tropas holandesas.

Paisagem do Monte das Tabocas. Foto: Jones Pinheiro (montedastabocas.blogspot.com.br)

Para trás do monte o terreno era pedregoso e completamente desfavorável, e se houvesse mais um recuo o fim poderia ser desastroso. Assim, mesmo sem a chegada dos reforços, decidiram arriscar uma batalha. Quem narra o acontecimento é Diogo Lopes Santiago, um letrado morador de Olinda, que foi testemunha ocular da maioria desses fatos. Segundo ele, João Fernandes Vieira assim se dirigiu aos luso-brasileiros:

“Chegou, senhores, o alegre dia, depois de tantos tristes e adversos, em que damos princípio a uma famosa e grande empreitada, que é nada menos que a da liberdade. Não vos trago à memória, ó pais que presentes estais, os corpos de vossos filhos que os inimigos tão injustamente despedaçaram com tormentos; (…) não vos lembro vossas fazendas saqueadas, nem vos refresco a memória com sangue derramado de tantos inocentes, (…) só quero que vos lembreis do que mais esquecido tendes, que é a honra de Deus nosso Senhor; depois lembrai-vos das honras de vossas mulheres, filhas e irmãs. Lembrem-se também que os holandeses não são gigantes, mas uma infame canalha (…). Combateis para preservar a própria vida, e se for para morrer, que seja na batalha como homens, e não depois, amarrados como animais. (…) Lembro-vos finalmente que para trás não há retirada, portanto é para frente que deverão abrir o caminho a ferro e fogo; e sabeis que aquele lugar haveis de ter na paz conforme vos houverdes na guerra”.

O sargento Dias Cardoso organizou três cargas de emboscadas, conseguindo deter o ímpeto inicial dos holandeses. Mas, como estes estavam em número muito superior, a luta foi extremamente demorada e difícil, com diversos momentos em que quase tudo se pôs a perder.

“Durava sem cessar a bateria, quando das 4 para as 5 da tarde, parecendo ao inimigo que já faltava gente nossa, por ver afrouxar os tiros, acometeu uma quarta vez sobre as emboscadas, arremetendo com muito furor sobre os nossos (…), e ganhavam desta vez tanto terreno que esteve a coisa muito arriscada a se perder totalmente se o Céu não acudira pelos seus fiéis. (…) “

 Ultimamente deu o inimigo três cargas tão grandes que parecia uma cousa medonha e horrível naqueles bosques e vales. (…)

Nesse momento extremo, continua o mesmo autor, aqueles que estavam envolvidos na luta entregaram a situação nas mãos de Deus “prometendo fazer muitas penitências e obras pias; e o governador João Fernandes Vieira, como é tão bom cristão como valente soldado, prometeu mandar fazer uma igreja a Nossa Senhora do Desterro“. O cronista prossegue descrevendo que, com forças revigoradas, os luso-brasileiros atacaram novamente, com mais barulho e força do que das vezes anteriores, forçando os inimigos a recuarem:

“E acometeram com tanto ímpeto que o desalojaram [o inimigo] e deitaram fora de campo, ficando com uma gloriosa vitória, alcançada pelos merecimentos da Sacratíssima Mãe de Deus, aos 3 dias do mês de agosto de 1645, dia do glorioso mártir Santo Estevão.”

Vitória de Santo Antão

Uma curiosidade adicional acerca desse dia é narrada por Diogo Lopes Santiago: os holandeses recuaram para Recife, mas deixaram pelo campo vários feridos e outros prisioneiros, que, por sua vez, confessaram aos vencedores que

 “(…) no mais arriscado e perigoso do conflito e bateria, viram andar entre os portugueses uma mulher muito formosa com um menino nos braços, e junto a ela um velho venerando, vestido de branco, os quais davam armas, pólvora e balas aos nossos soldados. E que era tanto o resplendor que essa mulher e o menino emitiam que lhes cegavam os olhos, e não podiam olhar para eles de fito a fito. E que essa visão lhes causou tanto temor e espanto que lhes fez logo virar as costas e retirar-se descompostadamente.”

Lopes Santiago assim conclui:

“Bem se mostra claramente que essa mulher era a Virgem Maria, Senhora Nossa, Mãe de Deus, que acudiu a nos favorecer logo que nossa gente implorou seu favor e socorro e a saudou com uma Salve Rainha, mostrando bem a Virgem que queria ajudar os nossos, com seu favor, a vingar os agravos que esses cruéis hereges lhe tinham feito(…) e o venerável velho, que vinha acompanhado essa Senhora, bem se deixa coligir que seria o glorioso Santo Antão, que entre aqueles ásperos matos e inabitados campos tinha sua igreja, onde os moradores faziam, todos os anos, a 17 de janeiro, sua festa, e que naquele tempo estava deserta por causa dos holandeses; ou poderia ser o proto-mártir Santo Estêvão, em cujo dia ocorreu essa batalha. Seja qual fosse, foram os próprios hereges que afirmaram ter visto essas imagens soberanas. (p.258)

 Em vista desses fatos, a cidade que surgiria nos arredores foi batizada de “Vitória de Santo Antão“, nome que permanece até hoje.

A Igreja de Nossa Senhora do Desterro e Santa Teresa

Como o Monte das Tabocas era na época um local ermo e bastante afastado, a igreja do Desterro não foi construída lá, mas num terreno situado na parte baixa de Olinda. Após a saída definitiva dos holandeses do Brasil (1654), João Fernandes Vieira foi nomeado governador de Angola, na África, e só voltaria a Pernambuco anos mais tarde. Assim, só pode cumprir sua promessa após o regresso, e a data provável do início da construção da igreja é o ano de 1661.

A invocação de ‘Nossa Senhora do Desterro’ refere-se aos fatos narrados no Capítulo 2 do Evangelho de São Mateus: quando o rei Herodes ficou sabendo do nascimento de Jesus, pretendeu matá-lo, obrigando a Sagrada Família a fugir para o Egito. Entende-se, portanto, porque essa devoção era especialmente significativa para aqueles que haviam sido despejados de suas casas e terras pelos invasores.

Fernandes Vieira faleceu em 1680 e foi sepultado originalmente nessa igreja. Em 1686, sua viúva, que havia recebido o hábito de Santa Teresa, cedeu a igreja para os carmelitas descalços, que, por sua vez, no ano seguinte, iniciaram a construção de um convento contíguo ao templo. Assim, Santa Teresa de Ávila também passou a ser padroeira da igreja, juntamente com o orago ‘Nossa Senhora do Desterro’. Os carmelitas descalços ficaram nesse convento até 1823, quando foram deportados para Portugal, pois a maioria deles eram portugueses, e, naqueles anos turbulentos do início da nossa independência, eles foram vistos como ‘suspeitos’ com relação aos ‘interesses nacionais’.

A igreja possui um desenho arquitetônico simples, o que denota que a construção é ainda a original, sem muitas alterações. A fachada possui três arcadas, e também um grande nicho esculpido em pedra, com uma imagem de Santa Teresa de Ávila.

O interior, que provavelmente foi embelezado na segunda metade do século XVIII, possui talhas em estilo rococó, com traçados provavelmente inspirados no altar do Mosteiro de São Bento. Da mesma forma que o mosteiro beneditino, essa igreja também possui decoração nas tribunas e janelas.

Em anos mais recentes a igreja e o convento passaram a ser dirigidos pelas Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, sendo atualmente um orfanato para meninas carentes. Inclusive, foi nesse local que a Bem-Aventurada Lindalva Justo de Oliveira fez seu postulantado.

A Igreja do Desterro e Santa Teresa  raramente é visitada, mas possui um extraordinário significado histórico e espiritual.

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As estações da Via Sacra foram trazidas da França pelas irmãs vicentinas.

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Igreja do Desterro e Santa Teresa vista de uma das ladeiras de Olinda. Ao fundo, a cidade de Recife

REFERÊNCIAS:

– BAZIN, German, L’Arquitecture Religieuse Baroque au Brésil, Tome II, Paris: Librairie Plon, 1958

– SANTIAGO, Diogo Lopes de, História da Guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre de campo João Fernandes Vieira (1634), Recife: FUNDARPE, 1984, p. 241  a 258

– CALADO, Manuel. O Valeroso Lucideno (2 v.). Belo Horizonte: Itatiaia 1987. (Coleção Reconquista do Brasil)

Batalhão de Forças Especiais Antônio Dias Cardoso

Monte das Tabocas

2 comentários sobre “Igreja de Nossa Senhora do Desterro e Santa Teresa – Olinda, Pernambuco

  1. Igreja lindíssima nascida com uma espetacular história. Ler isso nessa época deprimente em que vivemos até deu uma ‘reacendida’ no meu apagado orgulho de ser brasileiro…
    Acho que o Monte das Tabocas deveria ser o um local de peregrinação, ou pelo menos deveria ser mais valorizado por sua memória. Um bravo aos esquecidos guerreiros de Pernambuco

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  2. Muitos Mistérios sobre a verdadeira historia da Igreja de Nossa Senhora do Desterro o arservo Espiritual que envolve os espaços interno é muito forte só estando lá pra entender

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